23 dezembro 2008

Começo

"Tudo começou com um terno. Digo tudo porque, na verdade, o meu absoluto existe há pouquíssimo tempo. Uns dez anos, para ser mais exata. Claro que eu já existo faz uns dezoito, mas não estamos falando de mim por enquanto.
Era uma euforia gigantesca, todos corriam de um lado para o outro e mal podíamos nos reconhecer em meio a tanto pano. Tanta cor, tanto pulo, tantas vozes, tanto ânimo, tanto fôlego. Os chapéus acabaram bem rápido. Consegui me agarrar num – vermelhinho estilo francês anos 20 – ridiculamente grande para minha cabeça. As meninas deliciavam-se com os tecidos, fabricando vestidos de mãe com cordinhas e broches chiques, com pérolas e esmeraldas e diamantes até.
Os olhinhos perseguiam as rendas e lenços. Tínhamos que nos aprontar rápido, ou talvez só o quiséssemos. Sobrei com um terninho. Terno é roupa de menino. Colocaram a música pra tocar e os mais velhos foram se pintar. Inconformada, não conseguia sair da frente do espelho. Não me lembro ao certo o que senti, então vou inventar que senti raiva (embora seja esse um sentimento meio pesado para uma pequena de oito anos). Senti raiva e chamei atenção e vieram me explicar.
Do que vou dizer agora, disso eu nunca esqueci. Escrevo aqui na tentativa de nunca mais esquecer. “Aqui você pode ser o que quiser”. E com isso saí do espelho, fui ser o que queria. Naquele sábado fui menino, nos que se seguiram fui velha, cavalo, vendedor de pipoca, astro do rock, bailarina, bruxa, duende, marido, mulher, vovô, bebê, sapo, peixe, madame, mendiga, chinês, alemão, russo, bonita, feia, estátua, muro, chão, terra, fogo, mar, Deus, estrela e até Sol.
Ali podia ser quem eu queria. Qualquer coisa que quisesse ser, sem a menor possibilidade de ser vetada. Era o meu absoluto. Foi quando começou. Foi quando eu comecei.(...)"

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