"Um dia sonhei que estava assim, no topo de um araçazeiro alto, lá em casa mesmo, procurando os araçás (goiabas) perfeitos, quando, de repente, vi, entre todos os outros, um araçá azul, lindo. Aquilo era como um milagre, mas era real ali. E eu já ia colher esse araçá único, deslumbrante, quando vi que Bethânia - que até então não estava - vinha subindo pelos galhos para perto de mim. Então olhei para ela e disse: "Bethânia, tem um araçá aqui que é azul, ele nasceu azul!". Ela disse assim: "Ah...", sem nem olhar, desmerecendo, e acrescentou: "Isso deve ser coisa dos japoneses que estão fazendo experiências". De fato, havia japoneses no recôncavo da Bahia quando a gente era menino; eles trabalhavam na lavoura, e eu ouvia dizer que faziam experiências, produziam tomates enormes, coisas assim, e, tanto tempo depois, Bethânia me disse aqulio no sonho. Eu respondi: "Não! Venha ver, isso é lindo, você tem que vir olhar!". E ela: "Ah...", desmerecendo outra vez. "Venha! Suba para olhar", insisti, até que ela subiu um pouco mais. Eu disse: "Vou tirar pra mim". Mas, aí, Bethânia ficou séria e sentenciou: "Se você tirar, eu me mato". Eu repliquei: "Que loucura, que ideia louca!". E fui tirar o araçá, achando que ela estava falando por brincadeira. Mas quando pus a mão no araçá, ela se jogou! Fiquei desesperado, olhando. Só que ela se jogou e caiu segurando as pernas num galho abaixo. Tinha feito uma pirueta! E ficou lá, se balançando, rindo da minha cara, contente por ter me enganado. Então eu disse: "Ah!", e arranquei o araçá azul. Mas, quando fiz isso, ela se jogou mesmo. Eu acordei desesperado! Fiquei assustado, mas, ao mesmo tempo, lembrava de como era lindo o araçá e contei ao Rogério, que também morava no Solar da Fossa. Eu nunca tinha feito psicanálise, mas Rogério sim, e ele fez uma interpretação do sonho: "Puxa, você não está vendo que está com medo de colher o que é seu? A Bethânia se tornou uma estrela e você, que veio ficar com ela e é um compositor, fica aqui, assim... é como se você estivesse não propriamente com inveja dela, mas soubesse que também pode colher uma coisa boa, deslumbrante, e não faz porque tem medo, como se, com isso, fosse matá-la. Entendeu?". Foi essa a interpretação dele. E foi até bastante interessante como primeira interpretação dum não-profissional. O Rogério é um gênio. Foi logo assim, de bate-pronto, no dia em que eu sonhei. Anos mais tarde, depois que voltei de Londres, já tinha passado o Tropicalismo, fiz a música."
Caetano Veloso, org. Eucanaã Ferraz, Sobre as letras, Ed. Cia das Letras, SP, 2003.
18 outubro 2009
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2 comentários:
olha só...
e eu jurava que araçá era um pássaro!
A minha mãe achava que existia mesmo araçá azul, que fofa!
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